segunda-feira, 25 de outubro de 2021

CARNEANDO UM PORCO


lá na cidade o sol nasce atrás de um edifício

 

 

 

 

CARNEANDO UM PORCO

 

Os colonos do nosso interior precisavam se bastar. No início, os tempos eram diferentes dos hodiernos. O dinheiro sempre era escasso e precisava ser reservado para as necessidades mais prementes. Não se gastava em luxo, mas também nunca faltava o básico. Quando não tinha dinheiro para comprar carne os colonos iam ao galinheiro sacrificar um galo. Periodicamente matavam um porco gordo o que supria as necessidades da família por longos dias.

Um dos momentos que Tia Clara não perdia, lá em casa, era a matança de porco.  Sempre que ficava sabendo, dava um jeito de vir. Papai não gostava dela, e dizia:

  -Ela sempre tem que meter o nariz em tudo. Que fique lá na cidade! Lá ela pode fazer o que quiser, mas que não venha querer comandar as coisas por aqui.

  Já no dia anterior, o ônibus parou na frente de nossa casa e ela desembarcou.

 O pai tinha seus motivos para não gostar dela, mas nós, gurizada, adorávamos a Tia. Sempre trazia presentes para nós, coisas da cidade. Uma vez, ao descer do ônibus, veio com uma caixa enorme. Era uma bicicleta encaixotada. Naquele dia papai não ficou mal humorado com a visita dela. Até ajudou a montar a bicicleta.

  Ela foi dormir cedo.

  - Precisamos madrugar amanhã de manhã.

  Bem antes do sol nascer ela já estava fazendo fogo para esquentar a água para escaldar o porco. O taxo com a água estava em cima de um tripé de ferro que ela mesma mandou fazer. No dia que trouxe o tripé disse para papai:

  - É uma vergonha sempre empilhar três montinhos de tijolos.

Tia Clara nunca esqueceu a colônia onde passou sua infância. Dizia:

- Que coisa maravilhosa é ver o sol nascer aqui na roça. Lá ele nasce atrás de um edifício.

Ela mesma foi chamar meus dois irmãos mais velhos para tirarem o porco do chiqueiro e esfaqueá-lo. Este era o único momento que a tia não encarava com naturalidade. Tinha pena do porco e não podia ver o coitado sendo sacrificado. Nesta hora procurava alguma coisa para fazer longe daí e só voltava quando o porco já estava morto. Porém sempre entregava uma vasilha para papai recolher o sangue para fazer o “Plud woscht”, uma espécie de morcilha feita com o sangue do bicho.

 Quando ela voltou viu que o sangue não estava na vasilha. Papai tinha esquecido de recolhê-lo. Este foi o motivo da primeira desavença do dia entre papai e Tia Clara.

Sempre que os ânimos ficavam acirrados eu pedia para mamãe intervir. Mas mamãe disse:

- Eles que são irmãos que se entendam.

O resto do dia transcorreu em relativa paz. Somente algumas palavras ríspidas entre meu pai e a Tia.

Fizemos linguiça, toucinho, torresmo, banha, morcilha e assado de porco que era guardado submerso em banha.

 Os quatro pés e as orelhas Tia Clara preparou para levar para casa. Levou também duas linguiças e uma cuca que a mãe fez para ela levar.

 Tia Clara se despediu de todos e no pai deu um abraço efusivo sem dizer uma só palavra, e embarcou no ônibus. Eles viviam brigando, mas se amavam.                                                                                                                             

 

 

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

FENO SAGRADO



iam aos campos recolher tufos antes do sol nascer

 

 

 

 FENO SAGRADO

 

Há muitos e muitos anos, um grupo de pastores vivia numa região onde o inverno era rigoroso. Durante a primavera e o verão, havia pastagens em abundância, e os animais engordavam e eram saudáveis. Porém, na estação fria, apareciam doenças, e com a desnutrição muitos, morriam.

 Um homem sábio, líder da tribo, quis ensinar aos pastores a se prevenirem, armazenando feno. Assim, haveria alimento, também, no inverno para os animais. Os pastores resistiram a essa novidade porque, diziam, que viveram bem até agora e precisavam de ninguém para lhes ensinar a lidar com o rebanho. Diante da atitude hostil e da ignorância dos pastores o “Sábio Líder” entendeu ser necessária uma nova estratégia.  Sugeriu às autoridades transformar o recolhimento do feno em prática religiosa. Quanto mais alguém recolhesse, mais santo e virtuoso se tornava e proporcionalmente haveria recompensa ou castigo na outra vida.

A estratégia funcionou e, a não ser pequenos desvios, todos os anos, durante o outono, os pastores recolhiam feno de acordo com suas necessidades.

Aquela tribo, agora, já era um pequeno povo e o recolhimento de feno passou a ser uma coisa sagrada entre seus membros. A maioria deles já não era mais pastores, mas continuava recolhendo porque queria garantir seu bem estar após a morte. Tudo andava bem e aquele preceito religioso mantinha a ordem, e o povo vivia feliz.

 Foi estabelecido um dia para o início da colheita do feno e aos poucos, esse dia se tornou o mais importante do calendário. As pessoas se presenteavam e comemoravam a data com muita festa.

As autoridades aprenderam que para lidar com o povo e torná-lo submisso o preceito religioso funcionava muito bem. Então instituíram várias normas, todas visando o bem estar e a convivência fraternal.

Um dia um pastor fez uma viagem e trouxe sementes de uma forrageira que viçava no inverno, e em vez de feno, passou a tratá-la na estação fria passando a não mais recolher o feno. Divulgou sua descoberta que rapidamente se espalhou entre os pastores. Quando as autoridades souberam do fato condenaram-no como herege e o subversivo pastor foi queimado em praça pública. Receavam perder o controle sobre o povo e por isso a desobediência devia ser castigada exemplarmente. Foi lançada uma maldição sobre aquela forrageira e mediante uma “Campanha Santa”, tentaram erradicá-la.

 Mas não conseguiram. Aos poucos, as sementes se espalharam e, também durante o inverno, os campos verdejavam.

  Muito mais tarde, apesar da repressão, as autoridades perderam o controle sobre a situação e não puderam mais impedir que os pastores usassem a “Forragem Maldita” em substituição ao “Feno Sagrado”.

 Agora, já se passaram muitos e muitos anos, e as pessoas vivem em cidades. Continuam, porém, a festejar o “Dia do Feno” e o seu recolhimento tornou-se uma tradição popular. No “Dia do Feno Sagrado”, de manhã antes de o sol nascer, vão aos campos e recolhem pequenos tufos de feno que são amarrados, artisticamente, com uma fita especial. O tufo é pendurado em algum lugar bem visível da casa e quando há alguma ameaça, queimam uma porção do “Feno Sagrado”. Acreditam que isso ajuda a afastar qualquer infortúnio. 

As autoridades fizeram uma releitura da história e pediram perdão ao pastor injustiçado.

 Seu nome era Galileu.

 

 

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

CRUELDADE com um macaquinho


A correntinha está guardada na casa de Dona Normi viúva de Alvis, que faleceu em 2016.

 

CRUELDADE com um macaquinho

 

 

O fato aconteceu há muitos anos. Alvis, meu irmão, ainda era piá quando os Gräf, lá em Coblens, tinham um macaco domesticado preso numa corrente. Ele foi capturado ainda filhote quando a mãe foi morta por um caçador.

 O ser humano, desde sempre, domesticou animais. Alguns aceitam com facilidade a domesticação como, por exemplo, o cachorro, o gato, boi, elefante, para citar somente alguns. Mas o macaco, por mais que pareça domesticado, jamais perde o seu instinto selvagem. Quando tem oportunidade, agride seu dono ou foge, de volta, para a natureza.

   O macaquinho chorou muito nos primeiros dias, mas aos poucos foi se ambientando a essa nova situação. Deram-lhe leite com mamadeira e ele se criou forte e saudável. Certo dia, por um descuido dos Gräf, o macaco fugiu. Conseguiu se soltar e fugiu com a corrente presa no pescoço. A gurizada dos Gräf ficou muito chateada porque gostavam do macaco e das macaquices que fazia.  Procuraram pelo bichinho nos matos da redondeza durante vários dias porém, do macaco fujão não se teve mais notícias.

Muitos anos depois, o Alvis achou a correntinha do macaco. Num domingo de manhã, foi ao mato caçar pombas. Na época as pessoas não tinham, ainda, a consciência ecológica como hoje e era muito natural caçar-se pombas, lebres e outros animais pelos matos da redondeza. De repente, deparou-se com algo inusitada. Aí estava a correntinha do macaco fujão incrustada no tronco de um açoita-cavalos. Conta Alvis que, no mesmo instante que viu a correntinha, se lembrou do macaco de estimação dos Gräf fato que havia acontecido há tantos anos. Certamente, pulando de galho em galho, a corrente ficou presa na forquilha do açoita e o macaco morreu enforcado. O Alvis guardou o acontecido na memória e quando viu a correntinha veio à tona o passado distante.

A correntinha está guardada na casa de Dona Normi viúva de Alvis, que faleceu em 2016.

A natureza nos presenteou com esse dom vital para sobrevivência. A nossa memória é algo fantástico.  

Segundo o meu entendimento, toda a domesticação é um ato de violência. Seja um passarinho preso numa gaiola, um boi puxando o arado, um cachorro, um gato ou qualquer animal. Retiramo-lo do ambiente para o qual foi criado. Muitos animais estão tão condicionados que já não sobreviveriam sozinhos na natureza.